Troyjo: acordo Mercosul-UE reduz dependência do Brasil em relação à Ásia

Para o economista, o acordo representa uma oportunidade para o Brasil se reposicionar como protagonista do comércio exterior dentro da nova geopolítica

Karina Lignelli
09/Out/2025
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Troyjo: acordo Mercosul-UE reduz dependência do Brasil em relação à Ásia

 

O acordo entre Mercosul e União Europeia (UE), em vias de aprovação, representa uma oportunidade histórica para o Brasil se reposicionar no tabuleiro geopolítico global. Também é a chance de o país diminuir a dependência da Ásia, hoje destino de quase 50% das nossas exportações.

Em conversa com o Diário do Comércio, o economista, cientista político e diplomata Marcos Troyjo falou sobre o acordo que deve ser assinado nos próximos meses, seus possíveis efeitos no comex brasileiro dentro da nova ordem e os impactos não apenas comerciais, mas nos fluxos de investimento, transferências de tecnologia e diversificação de mercados para o país.  

Parceiro da SP Chamber of Commerce da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o especialista palestrou sobre o assunto para empresários na reunião do Comitê de Avaliação de Conjuntura da entidade nesta terça-feira, 09/10.

Troyjo, que também presidiu o Banco de Desenvolvimento dos BRICS e foi secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia (gestão Paulo Guedes), destaca que a ascensão da Ásia - especialmente da China - alterou radicalmente o mapa do comércio internacional, levando o Brasil a depender fortemente daquele continente.

“Hoje, de cada dois dólares exportados pelo Brasil, um vai para a Ásia”, afirmou. Nesse contexto, ele defende que o acordo com a Europa será estratégico para reduzir riscos e ampliar parcerias de alto valor agregado.

O economista lembrou ainda que, após a pandemia e o aumento do protecionismo global, a União Europeia retomou a agenda de acordos comerciais, incluindo o Mercosul, como forma de manter protagonismo econômico. Para ele, “a Europa é uma potência investidora”, e o tratado pode atrair capital europeu para o Brasil em setores como energia, indústria e infraestrutura.

Apesar da resistência histórica de países como a França, o cenário político atual favorece a aprovação do acordo até o primeiro semestre de 2026, pois o texto está fechado e só falta a votação final no Conselho do bloco e no Parlamento Europeu, sinaliza.

No novo cenário geopolítico, marcado pela reconfiguração das cadeias produtivas, a chamada “reglobalização”, e agora pelo trumpismo, o Brasil precisa se firmar como ator confiável e diversificado, segundo o economista. “O acordo Mercosul-União Europeia é um passo decisivo para reposicionar o país em um mundo que está se reorganizando.” 

Confira a seguir os principais trechos da entrevista com Marcos Troyjo:

 

Diário do Comércio - Qual o atual status do acordo Mercosul-UE e por que ele é considerado controverso? 

Marcos Troyjo - Para falar disso, precisamos começar pela década de 1990, quando foram feitas muitas negociações entre regiões. Por exemplo, é do início dos anos 90 a constituição do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. É dos anos 90 o tratado de Maastricht, que aprofundou essa integração da União Europeia. É dos anos 90 também o início da circulação da moeda da União Europeia, o euro. É dos anos 90 a constituição de um acordo entre o México, os Estados Unidos e o Canadá, que se chama NAFTA, o acordo de livre comércio da América do Norte. Então, em diferentes partes do mundo você tinha essa ideia de que os países estavam se reorientando a constituir espaços cada vez maiores de cooperação econômica e de livre comércio, de facilitação de investimento. 

E é justamente no final dos anos 90, a partir de uma conversa, de uma troca de ideias entre líderes europeus e líderes da América do Sul, particularmente Fernando Henrique Cardoso e Felipe González, que foi presidente do governo da Espanha, e que envolveu alguns parlamentares, como por exemplo o (deputado) Paulo Borhausen, que ocorreu o início de um processo de integração da Europa com o Brasil, com a Argentina, Uruguai e Paraguai. Assim, por que não começar uma conversa sobre um acordo entre essas duas áreas? Enfim, é do final dos anos 90 o início dessas negociações. 

 

Mas por que as negociações não foram para frente já naquele momento?

Troyjo - Primeiro, os europeus, particularmente a França, Áustria e Polônia, tinham muita resistência à liberação do seu comércio agrícola. Eu lembro, por exemplo, de conversar com o embaixador Jorio Dauster, que era o representante do Brasil no que à época se chamava Comunidades Econômicas Europeias (CEE). Estava em Bruxelas e ele me dizia o seguinte: 'olha, é mais barato para um supermercado francês colocar uma vaca na classe executiva e levá-la para Paris do que financiar a vaca aqui.' Ou seja, é algo que não faz nenhum sentido do ponto de vista econômico.

Mas eu acho que essa memória do tema da segurança alimentar na Europa sempre foi muito importante no delineamento de políticas públicas, particularmente em países em que a agricultura tem um peso tradicional, como é o caso da França, onde sempre teve muita resistência. Por conta da resistência desses países, os obstáculos foram elevados. 

E o que aconteceu no mundo? Você tem uma outra região do planeta chamada Ásia, e cada vez mais uma ascensão dramática de um dos atores chamado China. Quando você tem o crescimento da renda a partir de patamares muito baixos, é natural que, nessa trajetória de aclive, as pessoas consumam muita caloria. Então, de repente, o Brasil e os outros países da América do Sul, particularmente os nossos parceiros do Mercosul, começaram a vender para a Ásia. 

 

E o cenário mudou para a Europa.

Troyjo - Em 2001, a soma de tudo aquilo que o Brasil exportava, com tudo aquilo o Brasil importava da China era, a valor presente, equivalente a US$ 1 bilhão por ano. Hoje, o comércio Brasil-China é de US$ 1 bilhão a cada 50 horas. Então, os próprios países da América do Sul dizem: ah, vocês europeus querem se fazer de difíceis? Tudo bem, eu tenho aqui meu mercado asiático.'

E o resultado disso tudo é que a gente acabou tendo uma expansão da Ásia como mercado destino das nossas exportações muito grande. Hoje, de cada US$ 2 que o Brasil exporta, US$ 1 vai para a Ásia. Mas não é só culpa dos europeus. Nós aqui na América do Sul somos muito protecionistas, sobretudo no setor industrial, no setor de vinhos. Hoje é mais barato para você comprar um vinho argentino em Hong Kong do que comprar aqui embaixo, na rua Boa Vista (no Centro de São Paulo).

Mas houve uma confluência de fatores no período de 2017 até mais ou menos 2020, que foi importante. Ao contrário do que manda a tradição argentina, teve a eleição de um presidente liberal, que era o Maurício Macri. E tinha o presidente Temer aqui no Brasil, que queria fazer do país um membro da OCDE. Então, criou-se um ambiente melhor para o avanço de algumas negociações. E aí, quando você teve a chegada da equipe do Paulo Guedes, como éramos muito liberais, nós achávamos que isso era importante. Então, teve a coincidência de ter uma administração econômica liberal na Argentina e no Brasil. Ou seja, dois países com uma administração liberal no Mercosul.

E, no caso da Europa, os titulares da Comissão Europeia, que teriam seus mandatos concluídos em julho de 2019, eles próprios queriam fechar esse capítulo. Então, nós conseguimos várias concessões dos europeus, como, por exemplo, no agro, que é onde nós temos os nossos principais interesses ofensivos.

E nós conseguimos deles também concessões no que diz respeito a um horizonte de tempo para a liberação do setor industrial, como, por exemplo, no segmento automotivo e no de autopeças, de 15 anos. No de vinhos, de 15 anos. E fizemos algumas concessões também aos europeus, pois eles tinham interesse que algumas regras de origem se aplicassem no segmento de derivados de leite, e nós topamos. Eles queriam uma velocidade um pouco maior para o segmento de vinhos espumantes, e nós topamos. Queriam concessões em navegação de cabotagem, em tráfego marítimo, e nós topamos. Tudo isso a gente topou, e por isso foi possível, em junho de 2019, que nós concluíssemos o acordo. 

 

Em que pé ficou desde então?

Troyjo - Depois que o acordo é concluído, ele precisa passar por uma revisão jurídica e para a tradução para as 27 línguas dos países da União Europeia. E, o que acontece nesse meio tempo? Aparece uma tal de covid-19, e a agenda é dominada por isso. Parou tudo. Depois, no ano passado, teve a eleição do presidente Trump, e começou a se projetar uma nova fase de protecionismo mundial da principal economia do mundo. E o que os europeus fizeram? Abriram a gaveta e tiraram o acordo com o Mercosul para voltar a negociar. O acordo foi reconcluído, e as negociações acabaram em dezembro do ano passado. O texto está fechado, não precisa fazer mais nada. 

 

O vice-presidente Geraldo Alckmin disse que o acordo deve ser assinado até dezembro. No atual cenário isso é possível?

Troyjo - O que é preciso fazer agora? Uma vez concluído o acordo, a Comissão Europeia precisa enviar para o Conselho Europeu, que é formado pelos chefes de governo dos 27 países. A Comissão Europeia já fez isso, já enviou, e agora o tema precisa ser votado. Dos 27 países, você precisa de 15 aprovações, e nós já temos isso. Uma vez que a aprovação seja feita, o acordo é remetido ao Parlamento Europeu em votação. Aí ele precisa ser aprovado por maioria simples.  

Então, o momento em que estamos é o de votação do Conselho Europeu para o encaminhamento do texto ao Parlamento Europeu, e nós achamos que ele deve ser aprovado nos próximos 9 meses - portanto, até o final do primeiro semestre do ano que vem. Ele sendo aprovado aqui no Parlamento Brasileiro, que é mais rápido, entra em vigor e o relógio começa a rolar.

 

Há risco de pressão dos Estados Unidos para levar a União Europeia a abandonar o acordo com o Mercosul?

Troyjo - Eu acho que não será uma pressão feita em público, mas uma pressão feita nos bastidores. Mas, veja, a União Europeia aprovou recentemente um acordo com o Japão, aprovou recentemente um acordo com o Mercosul, aprovou um acordo com a Índia, que hoje é a quarta maior economia do mundo. Então, me parece que a União Europeia já chegou a um arranjo com os Estados Unidos no âmbito das negociações desses últimos 90 dias. Ela quer buscar alternativas. 

 

A situação atual do governo francês, que está bastante desgastado, pode ajudar na conclusão do acordo, já que a França era a principal oposição a ele na Europa? 

Troyjo - A França é uma fórmula matemática, como se fosse uma equação. França é igual a agricultores franceses que recebem muito subsídio, mais a intelligentsia francesa, a universidade, os membros do parlamento. Essa é a França. Mesmo grandes empresas do setor industrial francês, os grandes bancos, as empresas de energia, eles querem algo.

Então, dependendo da conjuntura política e econômica, esse segundo grupo está mais forte que o primeiro. Aí, você tem um outro fenômeno: quando você tem acordos comerciais, a maioria ganha e a minoria perde. A maioria é silenciosa, a minoria faz um barulho danado. O sujeito pega lá um caminhão, joga um monte de estrume na Champs-Élysées, protesta... Mas é a maioria silenciosa que ganha.

 

Como o senhor avalia a posição atual do Brasil pós-tarifaço, primeiro como alvo e agora no caminho da negociação? 

Troyjo - O presidente Trump tomou posse no dia 20 de janeiro e no dia 2 de abril anunciou o que ele chama de 'política comercial justa e recíproca'. Justa e recíproca, na visão deles, óbvio. Qual foi o critério? Aparentemente, eles distribuíram 'alegria' para todo mundo: tarifa aqui, tarifa ali. Mas as maiores incidências tarifárias foram justamente para aqueles parceiros comerciais que vendem para os Estados Unidos, que tinham um superávit com os Estados Unidos, como Bangladesh, China, Coreia do Sul, Japão.

E para países que tinham um pequeno superávit comercial, como é o caso do Brasil, alocaram apenas 10%. E o que acontece no dia 9 de julho deste ano? Sai aquela carta em que o governo dos Estados Unidos, além dos 10% alocados no dia 2 de abril, aloca mais 40%. Hoje o que está em vigência são 50% - o que coloca o Brasil na posição incômoda de estar ao lado da Índia como os mais tarifados.

Foi criada uma lista de exceções, e nessa lista entraram vários produtos que são importantes para a pauta de exportação do governo brasileiro: celulose, aeronaves, petróleo... Mas alguns que também são muito importantes ainda estão com os 50%, como café, carne bovina, máquinas e equipamentos. Além disso, você tem uma sessão chamada 232, de segurança nacional, em que o setor de madeira, por exemplo, que trata de madeira derivada, está lá - o que não faz o menor sentido.

Há também uma investigação contra o Brasil, chamada investigação 301, que acontece no âmbito do USTR (o órgão americano de representação de comércio exterior), que são janelas perigosas e negativas contra nós. Aparentemente, a pressão ou a interlocução de líderes corporativos americanos junto ao presidente Trump levaram-no a fazer aquele gesto durante a abertura da Assembleia Geral da ONU. Alguns dos líderes de grandes empresas argumentaram: 'vai devagar com o Brasil porque é um mercado importante, a gente tem muitos ativos lá'. Me parece que isso ajudou a criar um ambiente em que se possa ter uma negociação mais benéfica para os exportadores do Brasil. Mas por enquanto eu não vejo nada muito fácil acontecendo.

 

O senhor já falou que o Brasil pode se beneficiar da reglobalização. O acordo Mercosul-UE seria um caminho?

Troyjo - Acho muito importante esse acordo porque a União Europeia, se levarmos em consideração como um todo, é a segunda maior economia do mundo do ponto de vista do PIB nominal. Primeiro são os Estados Unidos, segundo a União Europeia, que é maior que a China do ponto de vista do PIB agregado. Outra coisa, a União Europeia é uma grande investidora no exterior, e a China está começando a dar esses passos. A China se tornou uma potência comercial antes de ser uma potência irradiadora de investimento externo. A Europa é uma grande potência. Se pegar as 10 principais origens de investimento no Brasil, a probabilidade é que oito sejam europeias. Tem Estados Unidos, China e o restante é Espanha, Holanda, Reino Unido, que não está na União Europeia, Itália, França e Alemanha, que são grandes investidoras do Brasil.

Quando se tem um acordo dessa natureza, há impactos no fluxo comercial, mas em alguns casos você tem um impacto muito maior no fluxo de investimentos, na formação de joint ventures, na transferência de tecnologia, na ampliação de mercados. É muito importante para o Brasil conseguir se diversificar o máximo possível para além da Ásia. Hoje, a participação já é de 50%.

Olha que loucura: hoje o Brasil exporta mais para a Coreia do Sul do que para a Espanha, mais para Malásia do que para Itália, mais para Singapura do que para Alemanha, mais para a Índia do que para a Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte, Suíça. Se tiver alguma oscilação negativa ou depreciativa no desempenho econômico da Ásia, o comércio exterior é comprometido. Por isso é importante ter essa diversificação.

 

IMAGEM: Cesar Bruneli/ACSP

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